domingo, 4 de maio de 2008

Sugestão

Ultimamente tenho-me interessado pelo "choque de civilizações" assim apelidado por Huntington. Quem me conhece sabe também que tenho uma especial curiosidade por tudo o que acontece no seio da sociedade Holandesa. Digamos que a Holanda é um "modelo" para mim no sentido em que, sempre preocupada com a devida utilização, com a justa, a correcta utilização da Liberdade, este "desenvolvido" país está no imaginário colectivo como um lugar onde tudo é permitido e onde a Liberdade perece expressar-se plenamente. Acontece porém que se vive um estado de desnorte na sociedade Holandesa. Sinto-os tristes, perdidos, confusos. Li há uns tempos que até há quem pretenda fechar o celebérrimo Red Light District (Turn Out the Red Light? Amsterdam plans to close down its most famous district, citing sleaze, criminal activity and human trafficking. Not everybody is happy about it) onde, diga-se de passagem, é impressionante ver as meninas em vitrines como se estivessem num talho. Quando visitei Amesterdão uma sensação estranha apoderou-se do meu espírito: o tempo cinzentão, as grandes praças, a multidão "escurecida", constituída maioritariamente por muçulmanos, que deambulava de um lado para o outro, os inúmeros canais, as pontes e os barcos, as fachadas inclinadas em direcção ao passeio ameaçando as nossas cabeças, desafiando a gravidade a cada momento, os milhões de bicicletas, os carros velhos (ou pelo menos muito menos vistosos que os nossos!), as lojas de waffles, de sapatos excentricos e de roupas estranhas, as sobre lotadas coffee-shops, as flores, o gosto agradável da Amstel. Como bons turistas que somos não resistimos a fazer o sight seeing tour mas de barco, claro, não estivéssemos nós numa cidade 3 m abaixo do nível médio do mar (Schiphol, o aeroporto, tem um desnível de quase 5 m!!). Ao entrarmos para o barco perguntamos "Can we smoke inside the boat?" ao que o simpaticamente bruto holandês (parente afastado de algum pirata) respondeu "Of course! You´re in Amsterdam! Here, everything is allowed!"; o meu amigo continuou a fumar alegremente com um brilhozinho nos olhos que parecia dizer "Isto sim, é uma cidade!". No entanto a atracção principal, aquilo por que esperávamos, era a noite de Amsterdão. Começava aos poucos a desvendar-se pelo som que saía, cada vez mais audível, das discotecas e bares. Fulminante. Uma agitação inigualável. Sentia-se a adrenalina de estar num sítio potencialmente perigoso. As caras eram estranhas em cada esquina. Dealers ás dezenas ofereciam-nos "the best weed in town". O red light ruborizava-me a cara. De vez em quando desviava o olhar. As ruas eram estreitas e sujas. De repente "Drop your beer on the floor now!". Era um policia que falava connosco. "It´s strictly forbidden to drink alcohol at the Red Light District! Pour the beer on the floor and put the can on the trash bin immediately!!". Um homem encorpado que montava uma não menos imponente mota, bem ao género da nossa PSP. Olhámos uns para os outros. Será que tínhamos percebido bem? Era para deitar as bebidas fora? "Drop the drinks NOW!" Ok Ok. Era mesmo isso. Que mal! Eu que tinha acabado de abrir a cerveja (500 ml!!) e só tomado um gole! Os meus amigos estavam pior: traziam whisky-cola... Como podiam eles proibir que bebêssemos álcool naquela zona?! Que grande "pecado" realmente beber cerveja na rua! As prostitutas, proxenetas e traficantes em geral podiam levar a mal...Não ripostamos e derramamos as bebidas no chão, em fios espessos, que escorreram espumosamente para o bueiro. Continuamos o nosso périplo por Sodoma. De facto, sentia-se um ambiente de permissividade. De promiscuidade até. Sentíamo-nos super-homens tal o domínio que aparentavamos ter sobre tudo o que nos rodeava. Tínhamos a sensação de poder fazer o que nos apetecesse até que chegasse alguém e nos dissesse o contrário.

Terá sido Theo Van Gogh vítima deste sentimento? Sentiria ele que tudo lhe era permitido? Sentir-se-ia um super-homem numa super- cidade? Sentiria ele que dominava todas as situações? Haveriam limites para Theo? Até que ponto ele poderia ter chamado aos marroquinos/muçulmanos "fodedores de cabras" e não esperar consequências? Em nome de uma suposta liberdade de expressão tão típica da cultura holandesa, Theo Van Gogh usou a palavra. Usou ou abusou? Que razões estão por detrás do assassinato de Theo, ou melhor, o que levou Mohammed Bouyeri a agir daquela forma particularmente violenta, naquela manhã fria de 2 de Novembro de 2004? O que levou o jovem a matar, sem pestanejar perante o pedido de misericórdia da vítima- "Não faça isso! Peço-lhe que não faça isso!". Claro que não há desculpa para um assassino mas até que ponto é razoável chamar a Theo "mártir da liberdade de expressão" a ponto de lhe erguerem um monumento em Oosterpark? Ficam as questões. Se quiserem tentar vocês mesmos perceber o que se passa neste momento na cidade onde tudo é permitido aconselho a lerem "A morte de Theo Van Gogh e os limites da tolerância", do jornalista holandês Ian Buruma. Um livro daqueles que não se consegue parar de ler até chegar ao fim e quando se chega, recomeça-se.

De Schreeuw (O Grito) Memorial a Theo van Gogh e símbolo da Liberdade de expressão

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